Um país fraturado

15 de junho de 2020

Fundado no extermínio da população nativa e construído pelos braços da escravidão africana, o Brasil já está acostumado com o racismo brejeiro, aquele que se esconde atrás de um sorriso gentil, de um gesto simpático, de um discreto desviar de olhos. Ou estava, porque como todas as crises, ao chegar a um paroxismo, balançam as estruturas.
O menino Miguel Otávio foi vitimado pelo descaso da elite há 10 dias, e ao invés de entrar para a lista de horrores que é produzida diariamente, assimilada e então esquecida, sua morte parece ter sido a gota d’água que faz transbordar o imenso açude de injustiças de nosso país.
Bem como na maior parte do mundo, uma vida, tão indispensável quanto qualquer outra, serve de catalisadora para a revolta generalizada contra séculos de opressão. George Floyd morreu nos EUA por não conseguir respirar sob o joelho da repressão do sistema que promove o encarceramento em massa de negros, e trouxe a respiração de volta às ruas. Nelas, finalmente, brancos formam barreiras para impedir a violência de policiais contra o povo negro. Já não era sem tempo. Mesmo quem não tem lugar de fala precisa falar, e ocupar um lugar, pois só há dois: uma posição a favor do extermínio e outra, contra – a qual exige não só observação mas, sobretudo, ação.
Informação é poder, e essa semana o governo tentou sonegar dados epidemiológicos capazes de salvar vidas. Tentou, mas não logrou êxito, pois a sociedade civil e, até mesmo, a grande imprensa, não o permitiram e forçaram o recuo do Ministério da Saúde. Esse, comandado acidentalmente por um general estrategista de guerra que não conhece o mapa do próprio país. Seria inacreditável, não se tratasse de um governo que despreza livros didáticos.
Mas a história transparece, apesar das tentativas de acobertamento. O valor do simbólico está literalmente nas ruas: na França, a fotografia de Adama Traoré mostra que a repressão aos negros é globalizada; ao redor do mundo, derrubam-se estátuas de escravistas homenageados ao longo do tempo; no Brasil, o menino Miguel reúne uma profusão de símbolos gritante: a mãe solo que não pode fazer quarentena e dispensar o salário minguado bancado por dinheiro público pois precisa passear com os cachorros da mulher branca da elite que tem seu nome inscrito no auxílio emergencial.
Paradoxalmente, o valor da educação nunca ficou tão claro. Contra tudo, os livros de história continuam existindo, e a história do país continua sendo escrita – nos livros e nas ruas. O passado de escravidão é um capítulo vergonhoso que precisa ser estudado a fundo, para que a fratura da sociedade seja de ordem diversa da que vemos hoje: seja uma linha que separa o antes do depois.

Fonte: ANDES-SN – Publicado em 12 de Junho de 2020 às 17h22

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