Documento produzido por grupo de pesquisa da UFBA analisa implicações de projeto de Bolsonaro para universidade pública
Lu Sudré
Brasil de Fato | São Paulo (SP),22 de Novembro de 2019 às 17:00
Com mais de 500 páginas, um dossiê produzido pelo Grupo de pesquisa Trabalho, Precarização e Resistências da Universidade Federal da Bahia (UFBA) apresenta um diagnóstico minucioso do projeto “Future-se”, apresentado por Abraham Weintraub, ministro da Educação, como solução para o financiamento do ensino superior brasileiro.
Divulgada esta semana, a nova edição do documento “Dossiê do programa ‘Future-se’ e as implicações para a universidade e sociedade” reúne artigos e pronunciamentos oficiais de universidades, assim como de entidades relevantes da área – como a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), instituições sindicais de docentes e estudantes.
Segundo Graça Druck, professora titular da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da UFBA e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades, o grupo de trabalho responsável pelo dossiê realizou um seminário para discutir o programa logo após a apresentação da minuta do “Future-se” pelo MEC aos reitores no dia 17 de julho.
A primeira edição do material foi publicada em agosto e outras duas atualizações em outubro e novembro, baseadas na segunda versão da minuta do Projeto de Lei, apresentada pelo governo em meados do mês passado.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Druck analisa os pontos mais alarmantes do projeto defendido por Weintraub. Ela ressalta que a universidade pública, gratuita e “socialmente referenciada”, está sob ataque.
“O ‘Future-se’ vem com uma proposta de buscar recursos próprios, fora do orçamento do Estado. De que forma? Renunciando à autonomia garantida pela Constituição, já que as universidades deveriam se subordinar aos interesses privados, terceirizando a gestão, através das organizações sociais e fundações, e securitizando o patrimônio público das universidades”, resume.
“É um primeiro passo para que o Estado se desobrigue do financiamento público da educação superior, além de transferir o patrimônio público das universidades para as OSs e fundações”, diagnostica a pesquisadora.
De acordo com ela, o dossiê registra uma enorme rejeição ao projeto por parte das universidades: 55% das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), que reúnem 82% do total de estudantes de graduação, disseram não ao programa.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato – A partir da produção do dossiê, o que o núcleo de pesquisa constatou sobre o projeto? Quais são seus pontos mais delicados?
Graça Druck – Em primeiro lugar, o MEC apresentou esse programa numa conjuntura muito particular propiciada pelo próprio governo: os cortes dos recursos das universidades federais com contingenciamento e bloqueio, gerando uma situação de asfixia, pois não é possível manter a universidade funcionando sem verbas de custeio, para pagamento de despesas básicas como luz, água, telefone e todos os serviços terceirizados. Esse corte foi justificado inicialmente pelo ministro da educação porque as universidades só faziam “balbúrdia”. E vem o “Future-se” como uma proposta de buscar recursos próprios, fora do orçamento do Estado. De que forma?
Renunciando à autonomia garantida pela Constituição, já que as universidades deveriam se subordinar aos interesses privados, terceirizando a gestão, através das organizações sociais e fundações, e securitizando o patrimônio público das universidades. É um primeiro passo para que o Estado se desobrigue do financiamento público da educação superior, além de transferir o patrimônio público das universidades para as OSs e fundações.
Quase seis meses após o anúncio do “Future-se”, qual a recepção dele nas universidades federais?
O programa foi rejeitado. A maioria das universidades federais já decidiu, pois 55% das IFES, que reúnem 82% do total de estudantes de graduação disseram não ao programa; 6,5% são críticas mas ainda sem posição; 23,5% sem posicionamento e em processo de discussão, 12% sem informações e apenas 3% (duas universidades) com possibilidades de adesão. Nenhuma aderiu oficialmente até o momento.
Vale ressaltar que os conselhos universitários que rejeitaram, o fizeram em sua maioria por unanimidade e precedidos de discussões em cada uma das unidades e congregações de cada universidade.
Na UFBA, foi um debate intenso, as congregações, que reúnem os dirigentes e representantes estudantis e de servidores, fizeram reuniões abertas com grande participação em quase todas as unidades. E a reunião do Conselho Universitário foi uma sessão pública com a participação de mais de 600 pessoas da comunidade, que decidiu por unanimidade a rejeição ao “Future-se”.
Quais impactos ele pode trazer às universidades brasileiras?
Os impactos que poderia trazer, pois esse programa não será implementado, a não ser que o MEC declare intervenção nas universidades federais. É um programa que não reconhece a natureza pública da universidade e quer transformá-la em uma “empresa” e, portanto, é a lógica privada, de mercado, do lucro que é defendida.
“Nenhuma aderiu oficialmente ao programa até o momento”
O objetivo principal é desmantelar o sistema público de ensino superior, separando ensino, pesquisa e extensão e estabelecendo uma hierarquia entre as universidades, além de criar uma lógica da concorrência interna entre docentes. Em termos de fontes de recursos financeiros, não traz nenhuma novidade, pois todas as universidades já captam recursos junto a instituições da sociedade, inclusive empresas, em sua imensa maioria públicas.
Veja o exemplo da UNB [Universidade de Brasília], que é uma das que mais arrecada recursos próprios: em 2018, dos 78,5 milhões arrecadados, 92% foram de empresas públicas e somente 7% de privadas. Isso tem uma explicação: não há interesse do setor privado em financiar pesquisas nas universidades públicas, dado o caráter dependente da economia brasileira, pois as pesquisas são feitas nas matrizes sediadas nos países desenvolvidos. O único interesse do setor privado é ter facilitado o acesso ao mercado de estudantes, pois a educação virou um grande negócio e, se o programa vingasse, seria um grande passo nessa direção de privatizar o ensino público superior.
Críticos ao projeto argumentam que a autonomia universitária está em risco. Por quê?
A autonomia universitária está em risco com esse governo, para além do “Future-se”. Há outras medidas nessa direção, como a extinção de algumas funções gratificadas nas universidades, sem qualquer diálogo com os reitores; que a escolha de cargos de direção, como os pró-reitores por exemplo, deixe de ser prerrogativa dos reitores e passe a ser indicados pelo MEC e pela Casa Civil; o desrespeito às eleições dos reitores de universidades e institutos federais, escolhidos pela comunidade e referendados pelos conselhos superiores, indicando o último da lista ou interventores externos (como é o caso da Universidade Federal da Fronteira do Sul, Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Universidade Federal da Grande Dourados e do Cefet no Rio de Janeiro).
No caso do “Future-se”, a proposta é de autonomia administrativa e financeira em relação ao Estado, através da transferência da gestão para instituições externas: as OSs e fundações. Isso fere o artigo 207 da Constituição Federal, que diz: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
Qual o interesse do governo em aprovar um projeto como esse?
A financeirização e privatização das universidades são o norte deste projeto?
Sim. Mas, além da privatização e financeirização, há um projeto de um governo neofascista, que precisa destruir todos os campos que lhe fazem oposição. As declarações do ministro expressam isso: “As universidades só fazem balbúrdia, são controladas pela esquerda, só doutrinam, querem liberdade para plantar maconha, etc”.
Um conjunto de acusações falsas, irresponsáveis, e que denotam a raiva que o governo tem dos espaços de democracia e de autonomia, que é o que as universidades públicas são, como um local de diversidade política, acadêmica, científica e teórica, onde a liberdade de pensar, criticar, produzir conhecimento é central. Além de ser uma instituição que deve estar em sintonia com as demandas sociais da sociedade brasileira, e não com os interesses privados.
Além de alterar o modo de financiamento, é possível que haja um cerceamento à liberdade de expressão no ensino superior?
O modo de financiamento é central para garantir a autonomia na produção do conhecimento, na liberdade de discussão, de posicionamento frente à realidade econômica, social, política e cultural. O financiamento público é decisivo para garantir a existência pública da Universidade. A educação pública é um direito que o Estado tem a obrigação constitucional de sustentar.
A liberdade de expressão está ameaçada sempre com esse governo, e há várias iniciativas de perseguição a professores por seus posicionamentos em sala de aula e/ou pelo tema das suas pesquisas. Exemplo disso é o que foi noticiado nesta última semana, sobre a “investigação” que o governo estaria fazendo sobre pesquisadores do CNPq que tem como temáticas as áreas de gênero, sexualidade e ditadura, com o propósito de desqualificá-las e mostrar que o investimento nas áreas de humanas é maior do que em áreas estratégicas. O que não é verdade.
Em relação a contratação e permanência de professores na universidade, quais as alterações propostas pelo projeto?
Em relação aos servidores – docentes e técnico-administrativos –, estes poderiam ser cedidos à organização social contratada, além de estabelecer novos tipos de contratação, “mediante celebração de contratos privados” de pesquisador e professor estrangeiro.
Embora a minuta do PL não tenha artigos específicos sobre a contratação, todo o teor do programa está em sintonia com a anunciada “reforma administrativa” do governo, que tem por objetivos centrais a redução do funcionalismo público estatutário, a quebra da estabilidade, a contratação temporária via CLT já reformada pela reforma trabalhista de 2017, o aumento da terceirização, além da redução salarial, via reestruturação das carreiras, aumentando as distâncias de progressão e via redução de jornada de trabalho. Um verdadeiro desmonte do funcionalismo público.
Hospitais universitários também serão afetados caso o “Future-se” seja aprovado? Quais são as consequências para essa área?
Os hospitais universitários já vivem uma antecipação do Future-se. Pois foi criada em 2012, pelo MEC, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que passou a gerir os hospitais, retirando a gestão das universidades. É uma grande “terceira” que contrata os seus funcionários via CLT, através de concursos públicos. Não é uma Organização Social, mas cumpre o mesmo papel. Retira das universidades o controle e gestão dos hospitais e passa a uma terceira, controlada pelo MEC – uma experiência que tem sido traumática para as universidades por uma série de fatores, pois criou dois regimes de trabalho diferentes (estatutários e CLT), os salários CLT são mais altos do que dos estatutários e foi progressivamente eliminando a estabilidade, quando substitui os servidores por contratos CLT. E não melhorou os serviços, nem resolveu a falta de equipamentos e de melhoria de infraestrutura.
Quando o MEC apresentou o “Future-se”, usou como exemplo inspirador do programa, essa empresa, mas propôs alterar a legislação sobre a EBSERH, liberando para que ela atenda planos privados e não somente o SUS, como é hoje. Ou seja, os hospitais universitários públicos passariam a ser utilizados pelas grandes instituições financeiras que controlam os planos de saúde. Mais um patrimônio público que seria “doado” ao setor privado.
Na sua opinião como pesquisadora e docente, qual a importância de continuar tecendo a crítica a esse projeto, que motivou grandes atos populares contra o governo?
Primeiro, o “Future-se” teve duas versões. Uma primeira em julho de 2019 e uma segunda que, supostamente, teria incorporado sugestões feitas por consulta pública on-line, apresentada em meados de outubro.
A última versão traz a novidade de “contratos de desempenho” , um instituto que foi criado pela reforma do estado de Fernando Henrique Cardoso, através dos quais será medido o desempenho da universidade, através de indicadores e estabelecido os “benefícios” correspondentes aos resultados, tais benefícios são receitas provenientes do Fundo Soberano do Conhecimento e do Fundo Patrimonial do Future-se, ou seja, da financeirização a qual esses fundos serão criados. Mas permanecem os “contratos de gestão”com organizações sociais e incluiu as fundações de apoio. Nas disposições preliminares incluiu a “obediência à autonomia universitária consoante o art. 207 da Constituição”.
“Hospitais universitários já vivem uma antecipação do “Future-se”
“Hospitais universitários já vivem uma antecipação do “Future-se”
Como analisa o reitor João Carlos Salles, presidente da Andifes, um PL não pode se contrapor à Constituição, e, portanto, esse preceito é inócuo ou a sua própria afirmação já é um desrespeito à Constituição. Em síntese, o Programa é em sua essência o mesmo. As manifestações que ocorreram não levaram ao recuo do governo. Mas anunciaram a rejeição que as universidades definiram. Entretanto, os ataque continuam, não apenas nas declarações irresponsáveis do ministro, mas nos cortes de recursos à pesquisa.
No objetivo de acabar com o CNPq, incorporando-o à Capes que está no MEC, na redução das verbas para o Censo Demográfico e de reestruturação do IBGE, na censura e exoneração do diretor do INPE, dentre outras. Por isso tudo, é necessária a discussão, o posicionamento firme em defesa do ensino público e gratuíto, das instituições de fomento à pesquisa, ou seja, do cumprimento à Constituição Brasileira.
Acredita que há apoio do Congresso Nacional para que seja aprovado? Seus trâmites estão avançando?
Não afirmaria que tem apoio da maioria do Congresso Nacional. A própria recomposição das bases do governo, com perdas importantes, sinaliza para maiores dificuldades. O MEC/governo anunciou que apresentaria o projeto ao congresso no dia 8 de novembro, estamos chegando quase no final do mês e até o momento não o fez. Acredito que o posicionamento das universidades foi e é fundamental.
Em outubro, Weintraub anunciou a suspensão do corte de 30% do orçamento das federais. Mesmo com o desbloqueio de verba, o que esperar para a educação superior sob esse governo?
As universidades já estão com uma defasagem orçamentária desde 2014, com contínua redução de despesas. No período de 2014-2018, houve redução de 15% ao ensino superior, já fruto da PEC que congelou os gastos sociais por 20 anos. O bloqueio das verbas neste ano pelo governo Bolsonaro foi asfixiante e já alterou a relação com as empresas prestadoras de serviços terceirizados, redefinindo termos de contratos, com demissão de funcionários terceirizados, criando uma situação de instabilidade e precariedade para esses trabalhadores e para o conjunto da comunidade universitária.
Segundo a Carta da Iniciativa para a CT no Parlamento (ICTP.br) sobre o Orçamento de 2020 para Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), na proposta orçamentária para 2020 (PLOA 2020), os cortes para CT&I são muito elevados. Os recursos para investimento no MCTIC (orçamento sem as despesas obrigatórias e a Reserva de Contingência) serão de apenas R$ 3,5 bilhões, ou seja, 32% menores do que o previsto na LOA 2019 e cerca de um terço do valor de uma década atrás.
“É necessário ir à luta“
Os recursos para fomento à pesquisa do CNPq foram reduzidos em 88% em relação ao aprovado para 2019. O orçamento da Capes sofreu um corte de 48% em relação ao definido na LOA de 2019, passando de R$ 4,2 bilhões para R$ 2,2 bilhões. O orçamento de custeio e capital das Universidades e Institutos Federais chegou, em 2019, a uma redução de cerca de 40% em custeio e 80% em capital em relação a 2016.
Diante desse quadro e da proposta de reforma administrativa já anunciada em entrevistas à imprensa, não se trata de “esperar” qualquer coisa desse governo, é necessário ir à luta, não apenas pela defesa do ensino superior público, mas do conjunto de direitos sociais e trabalhistas que estão sendo retirados, levando a um empobrecimento cada vez maior de amplos segmentos da sociedade brasileira. Um quadro que não é só brasileiro, mas latino-americano, cujas explosões populares e a derrota dos governos neoliberais estão a mostrar os caminhos.
Edição: Rodrigo Chagas