Artigo – Os Esquadrões da Morte e sua atuação na Paraíba em tempos de Ditadura Militar: história e legado

20 de março de 2024

Em homenagem a João Alfredo Dias, o Nego Fuba, e Paulo José dos Santos Félix, o Queimadas, vítimas, cada um à sua maneira, do terror institucionalizado da Ditadura Militar na Paraíba.

Luciano Mendonça de Lima (Professor de História da UFCG)

Há 60 anos, através de um violento golpe de Estado, que depôs pela força das armas e do dinheiro, um presidente eleito legitimamente pela maioria da população, o João Goulart, o Brasil mergulhou em um dos períodos mais tristes de toda sua história, cujas consequências, a rigor, ainda não conseguimos superar, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais. Por vinte e um longos anos, entre 1964 e 1985, membros das Forças Armadas, em especial os Generais do Exército, usurparam o poder e sucederam-se na presidência da República com mão de ferro, implantando uma ditadura que beneficiou uma pequena parcela da sociedade (grandes empresários, latifundiários, banqueiros, multinacionais, etc.), em detrimento da maioria da população brasileira, constituída por trabalhadores do campo e da cidade, donas de casa, intelectuais, estudantes, que com seu sangue, suor e lágrimas pagaram um preço alto pelo decantado “progresso” da nação.

Como toda ditadura, a militar brasileira precisou montar, ao longo do tempo, um aparato de segurança para cometer todo tipo de arbítrio, tais como: vigiar, censurar, perseguir, prender, torturar e matar quaisquer grupos, pessoas, entidades e lideranças que ousassem contrariar os interesses do Regime, tivesse essa suspeita fundamento ou não, os chamados inimigos internos. Estruturados por agentes das três Forças Armadas e membros das Polícias militar, civil e política, a conjunção orgânica desses órgãos repressivos, como o sinistro DOI-CODI, formava o coração das trevas daquela ordem terrorista a serviço do grande capital e que tantos males trouxe à maioria do povo brasileiro.

Integrantes dessa arquitetura do horror, mas resguardando certas particularidades em seu modo de ser e agir, existiram os famigerados Esquadrões da Morte, utilizados, preferencialmente, para executar sujeitos simples do povo, configurando uma verdadeira máquina de limpeza social e racial de indesejáveis aos olhos do sistema, via de regra, pessoas pobres e pretas acusadas de cometer furto e outros delitos miúdos. Atuando inicialmente nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, nos quais se destacou a figura mais emblemática e infame que foi o Delegado de Polícia Sérgio Paranhos Freury, rapidamente esses grupos de bandoleiros espalharam-se por outros Estados da Federação.

Na Paraíba, que não esteve imune à dinâmica da ditadura militar e seus crimes de lesa-humanidade, os Esquadrões da Morte eram compostos por agentes policiais e contavam, para isso, com o apoio e a conivência de gente graúda da terra, como diversos jornais e órgãos de Imprensa, grupos de comerciantes e proprietários de terra, políticos, entidades de classe, etc., do começo ao fim do Regime Militar. Do litoral ao sertão, eles “pipocaram” pelas diferentes cidades paraibanas. A maneira de proceder desses verdadeiros bandidos oficiais, fardados ou não, era semelhante: prisões arbitrárias, realizadas em plena via pública, sequestro de pessoas comuns sob a custodia do Estado, algo que remetia ao modus operandi da repressão política como um todo. Os sujeitos presos logo eram imobilizados, barbaramente torturados, extorquidos e, finalmente, mortos com requintes de crueldade. Ao fim e ao cabo, os corpos eram “desovados” em locais ermos, não sem grande escárnio e sensação de impunidade por parte de seus perpetradores e cúmplices.

Dentre as diversas histórias de vítimas dos Esquadrões da Morte, apresentamos sumariamente algumas, dentre os muitos casos registrados na Paraíba, especialmente no ano de1980, que coincide com a profunda crise final do regime. O primeiro caso refere-se a Moacir dos Santos da Silva, mais conhecido por Bermuda ou Divino, morador de um modesto cubículo na Rua Francisco Londres, na região do Varadouro, área central de João Pessoa. Depois de ter cumprido pena por envolvimento em furto de automóvel e consumo de drogas, havia se aposentado do mundo da pequena malandragem e batalhava para sobreviver como pintor de placas e para-choques.

Ao que parece, essa tentativa de “regeneração” moral não foi suficiente para que Bermuda tivesse sua vida poupada pelos “homens da lei” do cão. De tal modo que, por volta das seis horas da manhã de um fatídico dia de 1980, depois de ser violentamente retirado do interior de sua modesta residência, seu corpo foi encontrado em frente à oficina, onde trabalhava, crivado de balas de armas de grosso calibre, disparadas à queima roupa. Detalhe: não satisfeitos com a barbárie perpetrada, os carrascos da gangue paramilitar cortaram a língua da indefesa vítima.

Por sua vez, em Cajazeiras, situada no alto sertão paraibano, a população foi impactada por notícias nada alvissareiras, posto que algumas emissoras de rádio divulgaram uma lista com mais de vinte nomes, a maioria deles desvalidos da sorte, os quais o autor anônimo prometia eliminá-los, sumariamente. Embora a ameaça não tenha sido consumada na íntegra, o medo espalhou-se tal qual rastilho de pólvora, e transformou-se, pelos dias seguintes, em motivo de preocupação, no cotidiano daquela cidade e nos seus arredores.

Já em Campina Grande, município agrestino, situado a meio caminho do litoral e do sertão, os acontecimentos deram-se de forma totalmente diferente, pois a ameaça transformou-se em fatos, brutalmente, consumados. No dia 13 de abril de 1980, O Diário da Borborema, com o estardalhaço mercadólogo e ideológico que lhe era peculiar, publicou – em primeira página e com letras garrafais – um listão com os nomes de 115 supostos “bandidos” marcados para morrer. Dentre eles, encontravam-se três jovens, a saber: Marco Antônio da Silva, o Mocotó, 20 anos; Marcos Antônio de Araújo, vulgo Paraibinha, 34 anos; e, Paulo José dos Santos Félix, de alcunha Queimadas, com apenas 17 anos. Os três encontravam-se presos em uma das celas da Delegacia Central de Polícia, acusados de ser, no jargão jornalístico/policialesco da época, “lanceiros”, ou seja, praticantes de pequenos delitos. Três dias após a publicação do referido listão, em plena madrugada, seus corpos, parcialmente despedaçados, foram encontrados em dois extremos da cidade: um, no Bairro de Bodocongó, e os outros dois, no Bairro do Velame. Antes, contudo, eles foram soltos, perseguidos, extorquidos e torturados numa granja localizada no bairro dos Cuités, de propriedade do investigador policial José Basílio Ferreira, o Zezé Basílio, líder local do bando de facínoras profissionais.                                   

O que essas três histórias têm em comum? Elas possuem como pano de fundo a atuação de um grupo de extermínio denominado “Mão Branca” – importado da Baixada Fluminense-RJ e adaptado ao contexto local – cujo auge da matança deu-se nos primeiros meses do ano de 1980. Segundo dados oficiais, o grupo, formado por cinco policiais civis, e apoiado pela fina flor da boa sociedade paraibana, matou, em questão de meses, pelo menos, 22 pessoas, crimes esses que permanecem impunes.

Dados e números esses aterradores, que, por si só, superam o da lista total de mortos e desaparecidos do Estado da Paraíba no período ditatorial, na qual consta os nomes de João Alfredo Dias, o Nego Fuba, e Pedro Inácio de Araújo, o Pedro Fazendeiro, líderes das Ligas Camponesas e militantes do PCB, cujos corpos, totalmente carbonizados, foram encontrados num matagal próximo ao município de Queimadas, em 09 de setembro de 1964. Nesse sentido, deveriam também entrar na conta macabra da Ditadura Militar que assassinou de comunistas históricos a deserdados da sorte, da vanguarda aos setores mais fragilizados da classe trabalhadora.

Estes, os alvos dos Esquadrões da Morte, são os antepassados mais próximos das vítimas preferenciais do braço armado do Estado autocrático brasileiro de hoje, a saber: o genocídio e o encarceramento em massa das populações pobres, pretas e periféricas. Assim como as vítimas políticas do Regime Militar, cujas fronteiras com as vítimas dos chamados crimes comuns são tênues, eles também tinham familiares e amigos que choraram e prantearam a dor da perda de um ente querido. Merecem, portanto, serem lembrados, clamam por justiça, verdade e reparação, sob pena do futuro repetir o passado em forma de catástrofe incessante.

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