(Luciano Mendonça de Lima, professor da UAHIST/CH/UFCG).
A história nos ensina que aqueles e aquelas que optaram e/ou foram compelidos a travar o combate ao capitalismo, desde sua gênese, entre os séculos XVI/XVIII, até os dias que correm, nunca tiveram e nem tampouco vão ter vida fácil enquanto essa ordem social persistir. Descarte, a classe dominante (os donos dos meios materiais e imateriais de produção e reprodução da vida em sociedade) não pensam duas vezes em lançar mão de todos os meios possíveis e imagináveis para impedir qualquer iniciativa, por parte de seus oponentes de classe, que coloque em risco os interesses do status quo. Daí que ao longo desse tempo esteve reservado aos opositores, em maior ou menor grau, múltiplas formas de repressão, tais como a morte, a prisão, a tortura, a perseguição, o exílio, a clandestinidade, a fome, a dor, o sofrimento, a humilhação, as calúnias e outras iniquidades típicas da vida cotidiana burguesa.
Convém destacar, que, por mais que todas essas lutas e esses lutadores tenham sua importância, que jamais podemos desconhecer, nem sempre apresenta ao sistema como um todo o mesmo peso e significado político. Em outras palavras, há aqui uma clara hierarquia. Nesses termos, entendemos que há embates e lutadores que são mais consequentes do que outros, em termos objetivos e subjetivos, apesar dessa afirmação não soar bem à uma certa sensibilidade relativista em voga no campo da própria esquerda. Para entender melhor essa complexa questão, é imperativo interpretá-la em chave histórica, na caracterização do modo de vida material e ideológico do mundo burguês e a dinâmica da luta de classes daí advinda.
Nesse sentido, entendemos que são os comunistas, especialmente quando conseguem enraizar seu ideário e assim potenciar os anseios imediatos e históricos da classe trabalhadora e seus aliados, que levam até as últimas consequências o questionamento retórico e práticos do edifício capitalista. A propósito disso, não é por acaso que, especialmente nos momentos de crises profundas, a burguesia e seu Estado identificam nos comunistas, com base em fatos reais ou imaginários, pouco importa, pelo menos para o raciocínio até aqui desenvolvido, os principais inimigos a serem combatido e, se possível, eliminados do mapa. Exemplos de ontem e de hoje não faltam, é só puxar pela memória.
Por seu turno, a história do comunismo, como projeto político e ideário, não pode ser explicada fora do tempo e do espaço. Nos diferentes países, os comunistas e suas organizações não deixaram de sofrer as vicissitudes das conjunturas locais e internacionais em que estiveram envolvidos nestes últimos séculos, algo que se aplica à perfeição ao nosso país. Quando os comunistas apareceram como forma política e ideológica organizada, nas primeiras décadas do século XX, tiveram que lidar com o legado de uma formação histórica que nasceu sob o signo da expropriação de base colonial europeia, a partir do século XVI, que após destruir os pilares das tradicionais comunidades nativas com as quais se depararam naquela quadratura histórica, sobre seus escombros ergueram uma sociedade escravocrata, baseada na exploração, opressão e violência contra os trabalhadores escravizados e seus descendentes, indígenas e, principalmente, africanos. Quando esse modelo foi se esgotando, pela conjugação de fatores internos e externos, foi substituído paulatinamente por um tipo de capitalismo, que não só manteve vários traços do sistema anterior, como acrescentou novas mazelas, agora em contexto de expansão imperialista.
Todo esse complexo ambiente iria contribuir para a formação de estruturas cada vez mais concentradora da propriedade e renda nas mãos de poucos, na forma autocrática de organização de um Estado policial, nas relações entre as classes e suas frações, no sistema ideológico autoritário/racista, em formas de repressão/ cooptação de segmentos subalternos, tudo isso com consequências claras para a constituição da classe trabalhadora brasileira (em seus potenciais e limites), alvo preferencial da atuação dos comunistas. Nada disso, entretanto, impediu que estes, superassem alguns desses óbices e, desse modo, tenham desempenhado destacada papel nos grandes embates da história brasileira. Não por acaso, foi nesse período que se forjou aquela que talvez tenha sido, pelo menos até agora, a mais capaz e conhecida geração de comunistas do nosso país, da qual fez parte militantes tão diversos como Astrogildo Pereira, Gregório Bezerra, Luís Carlos Prestes, Mário Pedrosa, Pedro Pomar, David Capistrano, Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira, Pagu, Mário Alves, Jacob Gorender, Caio Padro Júnior e tantos outros homens e mulheres vermelh@s.
Entretanto, no nosso modesto entender, a figura mais emblemática do comunismo brasileiro foi, sem sombra de dúvidas, Carlos Mariguella, nascido na cidade de Salvador-BA, no dia 05 de dezembro de 1911, resultado do casado de Maria Rita, mulher negra descendente de africanos Haussás, e o imigrante italiano Augusto Marighella. Da mãe, herdou o que de melhor a tradição africana produziu, em termos de lutas populares e coletivas, e do pai o internacionalismo socialista.
Da articulação de meio familiar, contexto social e ambiente política, Mariguella forjou sua personalidade, inicialmente na Bahia, depois Brasil e, por fim, mundo afora. Desde então e até os últimos dias de sua rica e atribulada vida, especialmente a partir de 1933, ano de seu ingresso no Partido Comunista Brasileiro, foi ator e testemunho de primeira grandeza da nossa esquerda: sentiu na pele a crueza de duas ditaduras abertas (a do Estado Novo varguista, de 1937, e a militar de 1 de abril de 1964) e um entreato, 1945/1964, de autocracia burguesa populista mitigada.
Mariguella, com seus erros e acertos, passou por quase tudo na vida: conviveu com grandes figurões da política brasileira, mas se sentia mesmo à vontade com sua gente simples, pobre e trabalhadora; ajudou a organizar greves e outras ações de massa da classe trabalhadora; escreveu textos em prosa e verso; foi Deputado Federal, quando no curto espaço de tempo de pouco mais de dois anos, procurou articular o trabalho parlamentar com a luta concreta dos trabalhadores do dia a dia; foi um militante disciplinado, o que não o impediu de em 1967 romper com o partido ao qual dedicou boa parte de sua vida, para em seguida fundar a Ação Libertadora Nacional e mergulhar, de corpo e alma, na incerta e perigosa batalha da guerrilha contra a ditadura militar; rompeu, às vezes de forma dolorosa e definitiva, com velhos camaradas; com outros teve tempo e grandeza de se reconciliar, como se deu no belo episódio de 1968, envolvendo ele e Hermínio Sachetta, jornalista e comunista dissidente desde 1930; amou, com toda a intensidade possível, a vida, as mulheres, os amigos e a humanidade trabalhadora; pagou o preço (a exemplo de toda uma geração de comunistas formada no século XX) da influência nefasta do stalinismo, essa página maldita que, em vez de ser reabilitada, como fazem até hoje alguns grupelhos travestidos de “revolucionários”, já deveria ter sido enterrada com todas as “honras” funestas.
Desse feixe de múltiplas influências, podemos destacar os mais fortes traços do homem e do comunista Marighella: a firmeza, a integridade, a coerência e a coragem. Traços esses que estiveram presentes em episódios chaves de sua vida: na fidelidade às suas raízes de classe; no suportar os momentos mais atrozes da tortura; de, em pleno 1 de abril, em função da incúria do PCB e a paralisia do governo João Goulart, conclamar, na Cinelândia, Rio de Janeiro, a resistência popular ao golpe; de enfrentar seus algozes, cara a cara, como no famoso episódio de sua prisão, num cinema da Tijuca, em 09/05/1964. A mesma coerência que teve em vida também se manifestou quando a morte parecia iminente. Marighella poderia, a bem da preservação de sua vida em extremo perigo, ter deixado o Brasil e partido para o exílio, como muitos de seus companheiros assim procederam, num momento em que a ditadura ia cada vez mais apertando o cerco contra seus inimigos, especialmente após a decretação do AI-5.
Em vez disso, com todos os riscos que essa decisão poderia implicar, preferiu não abandonar a luta e optou por continuar ao lado dos velhos e novos companheiros no seu país. Como tudo na vida, especialmente em situações limites como aquela, pagou o seu preço. O desfecho dessa história todos sabemos: ao ser atraído por uma emboscada, montada por um dos símbolos mais infames da ditadura a serviço do grande capital, o facínora do delegado Sérgio Paranhos Freyre, Marighella foi trucidado na fatídica noite de 04 de novembro de 1969, em pleno centro da cidade São Paulo, na Alameda Casa Branca. Entre trágico episódio e hoje, exatos 52 anos se passaram. Quais lições podemos tirar dessa história, com seus altos e baixos?
Uma coisa é certa: Marighella foi maior que os seus erros. Ao contrário de seus algozes, ele sobreviveu à sua própria morte e seu legado só fez crescer com o tempo. Prova disso é que ele continua a incomodar as classes dominantes e seus lacaios neoliberais fascistizantes de plantão. Aqui, pela simbologia, um exemplo basta: o ator, e agora cineasta Wagner Moura, padeceu por dois longos anos para, finalmente, conseguir exibir, para o grande público, o filme que fez sobre nosso personagem. Obra que, diga-se de passagem, apresenta problemas de conteúdo e forma, mas que só pelo fato de carregar no título o nome do inimigo público de todas as ditaduras burguesas, abertas ou dissimuladas, instalou o pavor nas hordas bolsonaristas.
E quanto a nós, que reivindicamos Mariguella, o que devemos fazer pra honrar a sua memória e levar as suas causas adiante? Penso que a melhor homenagem que poderíamos prestar a ele, seria conclamar que nunca foi tão urgente e necessário reafirmar a atualidade do verdadeiro projeto comunismo, mesmo no momento histórico, extremamente difícil, em que estamos mergulhados já de algum tempo, cujos efeitos mais medonhos para a grande maioria dos seres humanos, a pandemia só fez acentuar. Ao contrário do que se imagina, inclusive por alguns que se declaram “mariguellistas”, a solução para a barbárie em curso no Brasil e no mundo, não é o ceticismo paralisante. Mas também não, tampouco, o rebaixar da luta de classes, em nome do pragmatismo político-institucional e seus mesquinhos cálculos eleitorais.
Ao contrário, momentos de crise, como o atual, pode ser a ocasião ideal para vaticinar, como fizeram Marx e Engels em fevereiro de 1848: a força do comunismo, como única alternativa para a superar o capitalismo, antes, porém, esconjurando a lenda e substituindo-a pelo fato. Em outras palavras: se os inimigos dizem que o comunismo morreu, nós temos que bradar, de forma altissonante, viva o comunismo. Por conseguinte, se vivo fosse, por tudo que fez e pelo que disse, Marighella estaria, com toda certeza, nessa última trincheira: a do antifascista, das liberdades democráticas, do anticapitalismo e, lógico, do comunismo!