Chile: capitalização da Previdência faz idosos morrerem trabalhando e suicídio bater recorde

29 de abril de 2019

Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo, de Santiago

16/04/2019

Le­genda: Corpo de Mario En­rique Cortes, apo­sen­tado de 80 anos, co­berto por plás­tico na Praça da Cons­ti­tuição, em frente ao Pa­lácio de la Mo­neda, em San­tiago do Chile. Idoso morreu de in­so­lação, tra­ba­lhando para fazer frente à min­guada apo­sen­ta­doria.

O re­gime de ca­pi­ta­li­zação da Pre­vi­dência no Chile obriga os apo­sen­tados a se­guirem tra­ba­lhando, muitas vezes, até morrer. É o caso de Mario En­rique Cortes, “ju­bi­lado” que, aos 80 anos, pa­deceu de in­so­lação em pleno in­verno, como jar­di­neiro, em frente ao Pa­lácio de La Mo­neda, em 2014. De lá para cá, o país vem acu­mu­lando epi­só­dios trá­gicos como este. So­mado à onda cres­cente de sui­cí­dios na ter­ceira idade – com tiro, en­for­ca­mento ou en­ve­ne­na­mento -, o ce­nário es­can­cara a re­a­li­dade som­bria de uma terra em que a apo­sen­ta­doria foi trans­for­mada em ne­gócio para be­ne­fício das Ad­mi­nis­tra­doras de Fundos de Pensão (AFP).

“O atual sis­tema de apo­sen­ta­doria chi­leno tem 38 anos e foi im­posto pela di­ta­dura de Au­gusto Pi­no­chet, em 1981. Não houve dis­cussão. O par­la­mento era uma junta mi­litar, com­posta por um re­pre­sen­tante de cada seg­mento das Forças Ar­madas. Os ge­ne­rais e o mi­nistro do Tra­balho da época, José Piñera, irmão do atual pre­si­dente do Chile, Se­bas­tian Piñera, cri­aram as AFP. Hoje, a ca­pi­ta­li­zação faz nossos idosos mor­rerem tra­ba­lhando e a taxa de sui­cídio bater re­corde”, afirma o re­pre­sen­tante do mo­vi­mento No+AFP (Chega de AFP), Mario Vil­la­nueva. O di­ri­gente con­dena “a per­versão de um sis­tema de­se­nhado para que grandes grupos econô­micos e se­gu­ra­doras trans­na­ci­o­nais am­pliem seus lu­cros se apro­vei­tando do sa­cri­fício de mi­lhões de apo­sen­tados”.

Os idosos to­ta­lizam cerca de 16% da po­pu­lação chi­lena, de acordo com o censo de 2017, pouco mais de 2.800.000 pes­soas. Uma em cada cinco segue tra­ba­lhando a fim de com­ple­mentar a apo­sen­ta­doria. Para Ro­sita Korn­feld, ex-di­re­tora do Centro de Es­tudos de Ve­lhice e En­ve­lhe­ci­mento da Uni­ver­si­dade Ca­tó­lica e es­pe­ci­a­lista da Or­ga­ni­zação das Na­ções Unidas (ONU), tal nú­mero es­can­cara o aban­dono desse seg­mento por parte do Es­tado. “Eles têm um pro­blema grave de falta de re­cursos e também de so­lidão e de­sam­paro, o que os leva a to­marem ati­tudes ex­tremas”, avalia. “Se não pres­tarmos mais atenção e cui­dados, os casos de sui­cídio vão con­ti­nuar cres­cendo”.
Ra­di­cada no país há 11 anos, a psi­có­loga bra­si­leira Ana Paula Vi­eira, fun­da­dora e pre­si­denta da Fun­dação Mi­ranos, se de­dica ao tra­balho de pre­venção do sui­cídio entre os idosos. “Ob­vi­a­mente o au­mento alar­mante no nú­mero de sui­cí­dios não pode ser cha­mado de ‘fake news’.
Há vá­rios es­tudos, com dados ofi­ciais do Mi­nis­tério de Saúde, que re­velam as taxas muito altas de sui­cídio na ter­ceira idade em com­pa­ração com a média da so­ci­e­dade chi­lena”, ex­plica, em res­posta à afir­mação de Paulo Guedes, su­per­mi­nistro da Eco­nomia de Jair Bol­so­naro, de que as in­for­ma­ções sobre o cres­ci­mento do fenô­meno no Chile não pas­sa­riam de no­tí­cias falsas.

Vi­eira res­salta que só agora o tema co­meçou a ser dis­cu­tido de fato. “Até pouco tempo, o sui­cídio na ter­ceira idade não era vi­si­bi­li­zado por aqui. Fa­lava-se muito de ques­tões como mo­radia, o alto custo da saúde e, claro, a questão da apo­sen­ta­doria, mas o sui­cídio con­ti­nuava um tabu”, su­blinha.

Os casos em­ble­má­ticos de ca­sais de idosos que ti­raram a pró­pria vida foram o es­topim para que o tema fi­nal­mente en­trasse em evi­dência, ga­nhando man­chetes não só no Chile, mas também na mídia es­tran­geira. “Em 2018, as taxas con­ti­nu­aram altas e ou­tros casos en­vol­vendo ca­sais de idosos vi­eram à tona e, por isso, o as­sunto vem re­ce­bendo tanta atenção, in­clu­sive em nível de go­verno”, afirma. “Tenho ido ao Se­nado, como in­te­grante da Co­missão do Idoso, para apre­sentar dados e es­tudos sobre este pro­blema”.

O Es­tudo Es­ta­tís­ticas Vi­tais, do Mi­nis­tério de Saúde e do Ins­ti­tuto Na­ci­onal de Es­ta­tís­ticas (INE) do Chile é claro: entre 2010 e 2015, 936 adultos mai­ores de 70 anos ti­raram a pró­pria vida. O le­van­ta­mento – que não con­templa o agra­va­mento de­tec­tado até mesmo pela mídia pri­vada no úl­timo pe­ríodo – aponta que os mai­ores de 80 anos apre­sentam as mai­ores taxas de sui­cídio: 17,7 por cada 100 mil ha­bi­tantes – 70% su­pe­rior à média do con­ti­nente se­guido pelos seg­mentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de 15,4, contra uma taxa média na­ci­onal de 10,2.

Se­gundo o Centro de Es­tudos de Ve­lhice e En­ve­lhe­ci­mento, da Uni­ver­si­dade Ca­tó­lica, são ín­dices mór­bidos, que têm cres­cido de forma acen­tuada e que co­locam o Chile como um dos países com os mais altos ín­dices de sui­cí­dios nesta faixa etária em toda a Amé­rica La­tina. O fato de muitos meios de co­mu­ni­cação no Brasil ci­tarem pre­tensos es­tudos tendo por base dados da Or­ga­ni­zação Mun­dial de Saúde (OMS), de 2012, apenas re­vela a ten­ta­tiva de fugir do de­bate, pois foi a partir daí que, pas­sadas as três dé­cadas da “re­forma” di­tada por Pi­no­chet, “os idosos co­me­çaram a re­ceber as suas apo­sen­ta­do­rias e pu­deram di­men­si­onar o quão pouco re­ce­be­riam e que seu di­nheiro não daria para nada”, ex­plica Mario Vil­la­nueva. Atu­al­mente, 80% das apo­sen­ta­do­rias estão abaixo do sa­lário mí­nimo (301 mil pesos, ou 1.738 reais ) e 44% abaixo da linha da po­breza.

Uma par­cela sig­ni­fi­ca­tiva dos apo­sen­tados re­cebe cerca de 110 mil pesos (635 reais), quantia inex­pres­siva em um país em que os re­mé­dios e a ali­men­tação são par­ti­cu­lar­mente caros. Para se ter uma ideia do que re­pre­sentam esses di­mi­nutos ga­nhos no dia a dia dos chi­lenos, basta ob­servar que, desde fe­ve­reiro, o Ins­ti­tuto Na­ci­onal de Es­ta­tís­ticas (INE) cal­cula que o preço da cesta bá­sica ali­mentar em torno de 67.235 pesos (388 reais).

A “ca­nasta” está com­posta pelos se­guintes pro­dutos e quan­ti­dades: leite, 10 li­tros – $ 7.876; pão, 10 uni­dades de 500 gramas – $ 8.167; arroz, 1,5 quilo – $ 1.392; ovos, 20 uni­dades – $ 2.993; queijo, um quilo – $ 6.137; carnes de frango e de vaca, seis quilos – $ 29.533; frutas, seis quilos – $ 5.022 e ver­duras, oito quilos – $ 6.115. “Isso sem contar as contas luz, gás e os altos custos de me­di­ca­mentos e mo­radia”, acres­centa Vil­la­nueva.

Mi­séria, aban­dono e so­lidão

Apesar de ser ló­gico traçar um pa­ra­lelo entre esse ín­dice e a con­dição de mi­séria im­posta por um sis­tema de Pre­vi­dência que, na prá­tica, nega o di­reito à apo­sen­ta­doria digna a uma enorme par­cela da po­pu­lação, Ana Paula Vi­eira alerta: “o sui­cídio é um fenô­meno mul­ti­causal. Na ter­ceira idade, ele tem a ver com aban­dono, com so­lidão e, ob­vi­a­mente, com pro­blemas fi­nan­ceiros. A dis­cussão passa muito pela pre­ca­ri­e­dade da saúde e por di­fi­cul­dades econô­micas dos idosos. En­tre­tanto, é pre­ciso edu­carmos a so­ci­e­dade sobre a com­ple­xi­dade desse pro­blema para con­se­guir en­frentá-lo ao invés de es­condê-lo”.

“Claro que para impor um sis­tema de Pre­vi­dência como o do Chile, foi ne­ces­sário haver ma­ni­pu­lação mi­diá­tica e cam­panha de mar­ke­ting. Mas não foi só isso. É um sis­tema im­posto pela força”. Esta é a ava­li­ação de Oriana Zor­rilla, his­tó­rica jor­na­lista chi­lena. “Se não ti­vesse ocor­rido a di­ta­dura e a re­pressão, so­madas às men­tiras e ilu­sões ven­didas à po­pu­lação sobre o mo­delo de apo­sen­ta­doria, não teria sido pos­sível aprovar um sis­tema assim”.

Pre­si­denta do Con­selho Me­tro­po­li­tano do Co­légio de Jor­na­listas do Chile, en­ti­dade que de­fende a ca­te­goria no país, Zor­rilla viveu con­cre­ta­mente a ex­pe­ri­ência da im­ple­men­tação das Ad­mi­nis­tra­doras de Fundos de Pensão (AFP), que trans­for­maram a Se­gu­ri­dade So­cial em ativos do mer­cado fi­nan­ceiro a partir da ca­pi­ta­li­zação in­di­vi­dual da Pre­vi­dência. Por ter co­me­çado a con­tri­buir antes do novo sis­tema en­trar em vi­gência, a jor­na­lista con­se­guiu se apo­sentar pelo mo­delo an­tigo. “A única van­tagem que tenho de ser velha é ter o pri­vi­légio de ter uma apo­sen­ta­doria digna, já que me apo­sentei pelo sis­tema an­te­rior, in­fi­ni­ta­mente me­lhor que o das AFP”, sen­tencia.

“Meu ma­rido, um en­ge­nheiro ele­trô­nico es­pe­ci­a­li­zado em me­di­cina nu­clear, sempre teve um sa­lário três a quatro vezes maior que o meu. No en­tanto, sua apo­sen­ta­doria, que é paga pelo sis­tema das AFP, é muito menor que a minha”, diz. Se­gundo Zor­rilla, o ma­rido dela, como mi­lhões de ci­da­dãos chi­lenos, teve o azar de ter co­me­çado a con­tri­buir so­mente no sis­tema im­posto pela di­ta­dura, o que foi obri­ga­tório a partir da sua ins­ta­lação.

“Por ter sido ge­rente e re­ce­bido um sa­lário maior que o meu a vida toda, todos me di­ziam que ele era um bom par­tido. Agora, eu sou o bom par­tido, por não de­pender do sis­tema das AFP. É um con­tras­senso total”, iro­niza.

Os jor­nais e as emis­soras de rádio e te­le­visão ven­deram muitas men­tiras sobre o que seria este mo­delo de apo­sen­ta­doria, re­lata Zor­rilla. “Os meios de co­mu­ni­cação não só fi­zeram, lá atrás, como se­guem fa­zendo cam­panha para um sis­tema que, na re­a­li­dade, é um as­salto à mão ar­mada contra toda classe de tra­ba­lha­dores: de jor­na­listas a en­ge­nheiros, de fun­ci­o­ná­rios pú­blicos a ope­rá­rios”.

Há poucos dias, o Co­légio de Jor­na­listas pro­moveu o leilão da bi­bli­o­teca de um con­sa­grado jor­na­lista de San­tiago, Ro­drigo Beitia, di­ag­nos­ti­cado com Alzheimer. “A fa­mília deste pro­fis­si­onal bri­lhante co­locou à venda todos os li­vros ad­qui­ridos ao longo de sua vida para ajudar a pagar um tra­ta­mento e um lugar ade­quados para os cui­dados de saúde ne­ces­sá­rios”, conta. “Por um lado, é um gesto bo­nito, pela so­li­da­ri­e­dade que ele re­cebeu de todos nós. Por outro, é um re­trato que es­can­cara uma re­a­li­dade an­gus­ti­ante”.

Con­ta­bi­li­dade ne­fasta

Mario Vil­la­nueva res­salta que “en­quanto bancos como o BTG Pac­tual (do mi­nistro da Eco­nomia de Bol­so­naro, Paulo Guedes) pagam 4% de re­mu­ne­ração pelo di­nheiro apli­cado, co­bram dos mesmos tra­ba­lha­dores chi­lenos uma taxa de juros de 25% a 30%, fa­zendo com que tais ins­ti­tui­ções fi­nan­ceiras mul­ti­pli­quem ra­pi­da­mente o seu pa­trimônio”.

Assim, o total de fundos acu­mu­lados pelas AFPs já beira os 220 bi­lhões de dó­lares, ex­plica, o equi­va­lente a 75% do Pro­duto In­terno Bruto (PIB) do Chile. “Dois terços destes re­cursos, US$ 151,9 bi­lhões, estão, con­forme a Fun­dação Sol, sob o con­trole de três em­presas norte-ame­ri­canas: Ha­bitat, US$ 57,76 bi­lhões (27,4%); Pro­vida, US$ 53,03 bi­lhões (25,2%) e Cu­prum, US$ 41,14 (19,5%)”, es­cla­rece Vil­la­nueva.

É para mudar esta ir­ra­ci­o­na­li­dade que a No+AFP propôs re­cen­te­mente ao par­la­mento um pro­jeto que en­frente este mo­delo. “Es­tamos vi­vendo as con­sequên­cias de um sis­tema ins­ta­lado por uma di­ta­dura, cujos im­pactos re­caem sobre uma po­pu­lação que vai en­ve­lhe­cendo com apo­sen­ta­do­rias in­su­fi­ci­entes para so­bre­viver com um mí­nimo de dig­ni­dade. Isso se re­pete cada vez mais e vamos tendo muitos exem­plos de idosos que se sui­cidam porque não podem mais viver com essas pen­sões e que estão sós. Porque quando se impõe o ne­o­li­be­ra­lismo, o ‘salve-se quem puder’, as fa­mí­lias vão se de­sa­gre­gando, mul­ti­pli­cando-se os casos de aban­dono e sui­cídio”, aponta.

Vil­la­nueva re­corda que a pa­lavra ju­bi­la­ción (apo­sen­ta­doria, em es­pa­nhol) vem de jú­bilo – ale­gria, em­pol­gação, en­tu­si­asmo –, pe­ríodo em que as pes­soas de­ve­riam estar des­fru­tando. O oposto disso, en­fa­tiza, é o caso do casal de idosos que após mais de cinco dé­cadas juntos de­cidiu pôr fim às suas vidas, men­ci­o­nado também por Ana Paula Vi­eira. “O fato é que com re­cursos cada vez me­nores, os fi­lhos – que também não são tão novos – têm que passar a se res­pon­sa­bi­lizar pelos pais. E quando não há fi­lhos, os pais passam a de­pender de vi­zi­nhos. Tudo para que uns poucos es­pe­cu­la­dores, bancos e trans­na­ci­o­nais, lu­crem de forma exor­bi­tante”, pro­testa.

Fe­lipe Bi­anchi e Le­o­nardo We­xell Se­vero são jor­na­listas e in­te­gram o co­le­tivo Co­mu­ni­caSul.

O Co­le­tivo Co­mu­ni­caSul está no Chile com os se­guintes apoios: Centro de Es­tudos da Mídia Al­ter­na­tiva Barão de Ita­raré,  Diá­logos do Sul, Fe­de­ração Única dos Pe­tro­leiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sin­di­cato dos Me­ta­lúr­gicos de São José dos Campos, Sin­di­cato dos Me­tro­viá­rios de São Paulo, CUT Chile e Sin­di­cato Na­ci­onal dos Car­teiros do Chile (Si­nacar).

En­tre­vista gen­til­mente ce­dida ao Cor­reio pelos au­tores.

Fonte: Correio da Cidadania –

 

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