Segundo dia do Seminário 60 anos do Golpe de 1964 é marcado por intensos debates

27 de novembro de 2024

Nessa sexta-feira (22), docentes de diversas instituições do país e do exterior participaram do segundo dia do Seminário Nacional “60 anos do Golpe de 1964 – Memória, Verdade, Justiça e Reparação”, na Faculdade de Educação (Faced), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre (RS).


O evento, organizado pelos Grupos de Trabalho de História do Movimento Docente (GTHMD) e de Política de Formação Sindical (GTPFS) em parceria com a Comissão da Verdade do ANDES-SN, iniciou os trabalhos com a mesa “A luta por memória, verdade, justiça e reparação no Cone Sul da América Latina”.

Federico Tatter, membro do Comitê Executivo da Federação de Associações de Familiares de Detidos Desaparecidos da América Latina (Fedefam), foi integrante da Comissão da Verdade e Justiça do Paraguai, criada em 2006, e destacou as graves violações dos direitos humanos durante a ditadura cívico-militar paraguaia (1954-1989). O relatório, entregue com mais de 2 mil testemunhos e arquivos históricos, revelou conexões entre o regime paraguaio e outras ditaduras sul-americanas, além da influência dos Estados Unidos nesse período.

Federico é filho de Jorge Federico Tatter, militante do Partido Comunista Paraguaio, que teve que deixar o país, estabelecendo-se em Buenos Aires. Na Argentina, Tatter continuou sua participação na militância e desapareceu em 1976.

O representante da Fedefam, em sua exposição, destacou como a ditadura paraguaia consolidou uma aliança entre forças militares, empresariais e políticas. Nesse período, conforme ele, a repressão foi sistemática e reprimiu também grupos oprimidos por raça e gênero, além de impactar territórios ancestrais com grandes obras, como a Usina Hidrelétrica de Itaipu.

Tatter contou ainda que as recomendações da Comissão de Verdade tiveram baixa implementação, com apenas 5% das 177 propostas concluídas. Ele destacou a importância dos movimentos sociais e sindicatos na preservação da memória histórica e na luta por verdade e justiça. “O Estado atual é de desmemória. Em 35 anos de ditadura, apenas quatro pessoas foram condenadas, três policiais e um civil, todos por homicídio, não por desaparecimento forçado”, lamentou.

José Pedro Olivera, representante da Associação de Ex-Presos e Presas do Uruguai (Crysol), destacou que a ditadura no Uruguai perseguiu as opositoras e os opositores do regime e beneficiou as elites. No período, houve resistência popular, culminando em eventos como a greve geral e o plebiscito de 1980, o qual rejeitou a ditadura.

No entanto, a consulta popular não acabou com a ditadura militar no país (1973-1985), que matou oficialmente mais de 200 pessoas. 197 pessoas continuam desaparecidas e, conforme ele, a estimativa é que 25 mil pessoas foram presas sem julgamento e cerca de 20 mil professoras e professores foram expulsos dos seus empregos. Olivera também relatou a participação do Uruguai na Operação Condor, uma aliança de ditaduras sul-americanas, com apoio dos EUA, para reprimir opositoras e opositores ao regime.

Ele mencionou os danos econômicos da ditadura, como a corrosão dos salários e a submissão ao Fundo Monetário Internacional (FMI). “A ditadura no Uruguai foi uma luta por dinheiro e poder, como aconteceu no Brasil”, comparou. Apesar de avanços em leis de reparação desde 2005, ele criticou a Lei de Caducidade de 1986, que impediu a investigação de crimes da ditadura, atrasando a responsabilização por 20 anos.

José concluiu destacando a luta contínua da Crysol por memória e justiça, apesar das ameaças de setores reacionários. “Nós, como sobreviventes do horror, temos o compromisso moral de denunciar que aqueles que cometeram estes crimes sejam identificados, julgados e condenados. Não somente por nós, que estamos vivos, mas principalmente pela geração atual e pelas que virão”, disse.

María Alejandra Esponda, professora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais da Argentina (Flacso), abordou as consequências das ditaduras militares na Argentina, com uma análise crítica sobre a repressão e a exploração da classe trabalhadora. Ela é filha de um estudante de 24 anos que desapareceu na ditadura, e sua mãe sobreviveu aos centros clandestinos de detenção no país.

Em sua apresentação, Esponda fez um histórico que situou a derrota de Juan Domingo Perón, em 1955, até o regime de Juan Carlos Onganía, instaurado em 1966. Durante esse período, manifestações estudantis e mobilizações da classe trabalhadora emergiram em várias cidades, resistindo à opressão e denunciando as políticas antipopulares impostas pelos regimes autoritários.

Um marco simbólico da resistência foi a Carta Aberta de um Escritor à Junta Militar, de Rodolfo Walsh, que expôs a brutalidade econômica e social da última ditadura argentina (1976-1983), com a redução de 40% no salário real das trabalhadoras e dos trabalhadores, o aumento da jornada de trabalho necessária para pagar a cesta básica de 6 para 18 horas, e a reintrodução de formas de trabalho forçado. A professora destacou que essas medidas revelaram a cumplicidade entre o autoritarismo e a exploração capitalista, que precarizou a vida da maioria da população argentina.

Ela também abordou a repressão contra estudantes e docentes universitários, mencionando a Noite dos Botões Longos e a repressão à revolta institucional de 1969, o “Cordobazo”, que uniu estudantes, trabalhadoras e trabalhadores. “Foi uma grande potencialidade, uma revolta institucional em uma das principais cidades da Argentina, Córdoba, que, além disso, unificou a luta de estudantes e trabalhadores”, afirmou. Para Esponda, diante do que foi discutido na mesa de debates, não se pode pensar nos processos de ditadura nos países de forma isolada, mas sim como parte de um todo.

Em seguida, foi exibido o vídeo documentário “Adufrgs e Andes: história de um golpe”, da Seção Sindical ANDES-UFRGS, que abordou o golpe ocorrido em dezembro de 2008, quando a seção sindical e seu patrimônio foram usurpados em uma assembleia com menos de 40 participantes e 359 procurações dadas a 17 pessoas. O resultado foi a criação de um sindicato municipal e o desligamento do ANDES-SN. O vídeo mostra que esse golpe foi parte do processo de tentativa de destruição do movimento sindical docente classista.

Responsabilidade empresarial e violência
À tarde, foi realizada a mesa “Responsabilidade empresarial com a ditadura”. Alessandra Gasparotto, docente da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), apresentou uma pesquisa que investigou o envolvimento direto da Josapar — uma das maiores empresas alimentícias do Brasil, originária do Rio Grande do Sul, e conhecida pela produção do arroz Tio João — nas violações de direitos humanos contra camponeses na região do Guamá, no estado do Pará. A pesquisa revelou como a empresa se beneficiou do regime ditatorial.

Esse trabalho faz parte das investigações de Gasparotto, que é integrante da Comissão Camponesa da Verdade, criada em 2012 para reconstituir a história da repressão e violência no campo durante o período da ditadura. A pesquisa detalha o envolvimento da Josapar no maior caso de grilagem de terras paraenses, que afetou 10 mil famílias camponesas. A empresa usou seguranças armados para reprimir a resistência local, com o apoio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e da polícia militar, e casos de violência extrema, incluindo crimes contra mulheres.

A docente da Ufpel também destacou o financiamento público e os incentivos fiscais recebidos por empresas beneficiadas pelo regime, como a Josapar, e o envolvimento de figuras do alto escalão do governo ditatorial. “A Josapar foi listada pela revista Forbes como uma das maiores empresas do agronegócio brasileiro em 2022. Nossa pesquisa mostra como a Josapar se envolveu diretamente em violações de direitos humanos e foi beneficiada pelo regime ditatorial”, afirmou Gasparotto. Ela também levantou questões sobre o financiamento por grandes empresas de eventos como a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.

Alejandra Estevez, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), apresentou o caso da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fundada durante o governo de Getúlio Vargas como símbolo do desenvolvimento industrial, mas com uma história marcada por repressão, exploração e racismo institucional, como a proibição de pessoas negras frequentarem seus clubes sociais.

A empresa também praticava demissões em massa para silenciar qualquer tentativa de organização coletiva, como ocorreu após a paralisação de 1º de abril de 1964 e o Ato Institucional nº 1. Nos anos 1980, as greves nas unidades da CSN e suas terceirizadas enfrentaram intensa repressão, culminando em assassinatos e despejos forçados de trabalhadores e suas famílias.

“Foram identificadas 11 condutas ilícitas e violações contra os trabalhadores relacionadas à CSN, incluindo fornecimento de informações para repressão, prisões arbitrárias de lideranças sindicais e trabalhadores, repressão a greves, torturas, demissões em massa, assassinatos, despejos forçados de operários demitidos, intervenções sindicais, invasão da sede sindical, adoecimento e mortes por benzenismo e acidentes de trabalho, além de crimes ambientais”, elencou.

A docente destacou a inauguração do Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, no local do 1º Batalhão de Infantaria Blindada, usado para reprimir as mobilizações operárias da CSN. Para ela, é um marco no reconhecimento das vítimas da ditadura, sendo o primeiro espaço de memória relacionado à ditadura no Rio de Janeiro e em uma comunidade militar.

Gustavo Seferian, presidente do ANDES-SN e membro da Comissão da Verdade do sindicato, destacou que a Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012, foi um marco na luta pela memória, verdade e justiça no Brasil. No entanto, criticou a falta de um grupo de trabalho (GT) específico para investigar a repressão às trabalhadoras e aos trabalhadores do movimento sindical.

Em 2013, foi criado o GT13, formado por centrais sindicais, entidades e organizações de trabalhadoras e trabalhadores ex-presos políticos, que teve um papel crucial na construção de acúmulos históricos e resoluções sobre essas questões. Um dos avanços desse grupo foi consolidar a compreensão de que a ditadura brasileira (1964-1985) foi não apenas militar, ainda que as mediações da CNV tenham sido insuficientes para alcançar a natureza de classe da ditadura.

Seferian também ressaltou o papel do empresariado na manutenção do regime, observando que o Estado, sob a forma empresarial, acelerou a mercantilização de várias dimensões da vida social. Essa “empresarialização” afetou diretamente trabalhadoras, trabalhadores e suas organizações, além de influenciar instituições públicas como as universidades, que passaram por um processo de adaptação ao modelo capitalista. Para Seferian, é fundamental compreender a ditadura como parte de um modelo político-econômico voltado à consolidação do poder burguês.

O presidente do Sindicato Nacional afirmou que discutir a ditadura brasileira sob a ótica da classe é essencial para compreender as contradições e os desafios do movimento sindical na atualidade. Além disso, o processo de empresarialização das universidades públicas e outros setores reforça a importância de debater, dentro do movimento sindical, formas de enfrentamento que recuperem a autonomia e fortaleçam as condições políticas e materiais da classe trabalhadora. “O resgate crítico do período ditatorial, portanto, deve ser um instrumento para projetar caminhos de luta contra as ofensivas do capital”, afirmou.

Ditadura e a repressão
Na mesa “A ditadura e a repressão contra populações trabalhadoras, negras, periféricas, indígenas, quilombolas e LGBTI+”, Elaine Bispo Paixão, articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia, apontou a repressão ao movimento negro, às universidades e às comunidades quilombolas, além de perseguição e marginalização de populações LGBTI+ e indígenas durante a ditadura empresarial-militar no país.

Bispo destacou a continuidade das violências e os retrocessos sociais herdados do regime ditatorial, evidenciando a persistente relação entre empresas privadas e governos, que perpetua desigualdades e exploração. A ativista apontou que práticas autoritárias do passado se refletem em problemas contemporâneos, como o encarceramento em massa, a violência policial, a especulação imobiliária e a devastação ambiental, reforçando o legado de opressão e exclusão social

“Na Bahia, por exemplo, temos um governo extremamente cruel, que está se perpetuando há 18 anos, implementando a cogestão nos presídios [empresas que administram os presídios baianos], sem dialogar com a gente e transformando, a cada dia, a educação em um campo de negócio. Nossa polícia é a que mais mata, e eu afirmo que o sistema prisional representa a perpetuação desse genocídio contra a população negra”, denunciou.

Gilberto Marques, docente da Universidade Federal do Pará (Ufpa), abordou os genocídios históricos enfrentados pelos povos indígenas e outros grupos marginalizados no Brasil durante o período ditatorial. Ele destacou casos emblemáticos de massacres contra os povos indígenas, enfatizando o impacto de projetos de infraestrutura de “integração nacional”, como a Transamazônica.

“As estradas construídas no Brasil durante a ditadura, especialmente na Amazônia, são estradas de sangue, rastros de genocídio. A rodovia Transamazônica atravessou várias aldeias. A principal empreiteira, Paranapanema, passou com a estrada sobre territórios e cemitérios indígenas, sem sequer remover os corpos que lá estavam”, ressaltou.

Marques denunciou as violações promovidas por empresas e pelo Estado, como bombardeios, disseminação de doenças para dizimar comunidades, trabalho escravo e abusos sexuais. Ele criticou a invisibilidade desses atos e a indiferença, inclusive da esquerda, ao sofrimento dos povos indígenas.

O docente da Ufpa comparou o genocídio indígena à violência nas periferias urbanas e ao contexto internacional, como os ataques à população palestina na Faixa de Gaza. Ele concluiu enfatizando a resistência indígena e a necessidade de reconhecer e combater essas injustiças históricas e atuais.

Renan Quinalha, docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), questionou as e os presentes se haveria uma “ditadura hétero-cis-militar”. Ele relatou a sua experiência nas Comissões da Verdade de São Paulo e na Nacional, enfatizando as dificuldades em incluir questões de sexualidade, gênero, raça e populações indígenas nos relatórios.

O professor da Unifesp destacou que a ditadura não apenas reprimiu opositores políticos, mas também perseguiu dissidências de gênero e sexualidade, institucionalizando a LGBTI+fobia com censura cultural, violência policial e repressão moral. Quinalha citou exemplos de censura de músicas, livros e manifestações culturais que desafiavam os padrões conservadores da época.

“Não é para fazer um ranking para ver quem sofreu mais ou menos, mas para entender que todo mundo sofreu com a ditadura, a seu modo, e que a ditadura teve um alcance e um sentido muito maiores na subjetividade, nas nossas vidas, na nossa sociedade, do que, aparentemente, ela teve”, afirmou.

Renan Quinalha comparou as práticas repressivas da ditadura com o conservadorismo moral contemporâneo, afirmando que o autoritarismo brasileiro tem raízes na desigualdade e nas relações de poder, que continuam a reproduzir violências estruturais.

Após as mesas, o Coletivo de Professores da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre compartilhou as experiências de práticas pedagógicas de Vicente Schneider e Fernando Nunes sobre o ensino do golpe empresarial-militar de 1964.

Saiba mais
Seminário do ANDES-SN reúne docentes de todo o país para debater os 60 anos do Golpe de 64

Fotos: Eline Luz/ANDES-SN


Fonte: Publicado em 23 de Novembro de 2024 às 09h53. Atualizado em 26 de Novembro de 2024 às 10h51

Compartilhe:

Deixe seu comentário

Fale conosco agora