ARTIGO – Campina Grande, capital da infâmia.

15 de maio de 2020

Luciano Mendonça de Lima

Nos últimos dias Campina Grande, cidade situada no agreste paraibano com pouco mais de 400 mil habitantes, virou notícia nacional. No exato momento em que o Brasil ultrapassava a China em número de casos da Covid-19 (com mais de 5 mil mortes e 80 mil infectados) e o presidente genocida desdenhava da tragédia nacional, a insuspeita “Folha de São Paulo” publicou, na edição de 29/04/2020, foto em que um grupo pessoas aparecia em fileira e ajoelhadas em frente a algumas das principais lojas da Rua Maciel Pinheiro, epicentro do comércio local, em gesto de oração coletiva comandada por um homem em trajes amarelo e preto. Abaixo a seguinte manchete: “Protesto por reabertura de comércio na Paraíba é investigado”.

Essa e outras fotos já haviam circulado em redes sociais, gerando uma onda de comentários e protestos desde 27/04/2020, dia em que o evento registrado pelo jornal efetivamente ocorreu. Essa é daquelas imagens que falam por si só. Em sua crueza, ela se dá a revelar num quadro feito de crueza e sordidez humana. Contudo, se quisermos captar camadas mais profundos de significados sociais nela contidos, é preciso ir além da imediaticidade dos fatos. Aqui um pouco de história pode ajudar.

Como muitos outros municípios brasileiros, Campina Grande se constituiu desde sua gênese em “costas negras”. Isso significa dizer que a riqueza social produzida na ‘Rainha da Borborema” (epíteto com o qual a cidade também é conhecida) foi gerada a partir de um intenso processo de exploração, opressão e humilhação cotidiana de milhares de homens e mulheres escravizadas, entre os séculos XVII/XIX.

Em meados do século XIX, quando veio a crise do sistema que desembocou na abolição, os proprietários de terra e de gente local procuraram diversificar o emprego de seus ativos financeiros, investindo em imóveis urbanos, indústrias, serviços e atividades comerciais. Dos escombros do escravismo se amalgamaram os elementos que, de certa maneira, ainda hoje estão na base da economia de Campina Grande. Foi dessa “terra e desse estrume” pestilentos que se formou a “fina flor” de uma nova/velha classe dominante ciosa de seus privilégios, em relação a seus pares, ao Estado e as classes subalternas. Para isso ela criou, dentre outras coisas, organizações de classe para fazer valer seus interesses, como a Associação Comercial de Campina Grande, nos anos 1920, a Federação das Indústrias do Estado da Paraíba, na década de 1950, e, em 1966, em plena ditadura militar, a Câmara de Dirigentes Logistas.

Essas entidades contribuíram para que os comerciantes se tornassem a principal facção da burguesia local, setor esse que foi se apropriando da maior parte da riqueza socialmente produzida e comandando com mão de ferro os destinos políticos da cidade. Como estes senhores concebem a urbes como uma extensão de seu mando pessoal, a classe trabalhadora sempre foi tratada com o maior desprezo e violência, um dos mais fortes componentes que seus antepassados dispensavam aos escravizados de um passado não muito distante.

Pois bem, o que aconteceu em 27 de abril e colocou Campina Grande nas manchetes nacionais, e até internacionais, tem a ver, também, com a história aqui resumida. Ao contrário do que órgãos de imprensa e jornalistas venais divulgaram inicialmente, aquela não foi uma manifestação espontânea, pensada em comum acordo entre patrões e “colaboradores”, termo esse que a ideologia burguesa inventou para diluir o caráter de exploração e opressão que continua a marcar a relação capital x trabalho. Ao que parece, aquele foi um ato milimetricamente pensado e organizado pelos representantes patronais, adoradores do deus dinheiro. Não por acaso naquele dia as ruas centrais da cidade amanheceram com cartazes anunciando o “juízo final”, caso o comércio local não reabrisse suas portas imediatamente. Dentre os vários empresários presentes naquele espetáculo dantesco, se encontrava José Artur Melo de Almeida, vulgo Bolinha, presidente da CDL, notório arrivista e bolsonarista, que, de forma oportunista, tem aproveitado a comoção gerada pelo coronavírus pra colocar o funesto bloco de sua candidatura a prefeito municipal em evidência.

Usando da intimidação e do pânico gerado pelo desemprego e o desespero da fome, estes senhores obrigaram os trabalhadores a se submeterem ao seu capricho e busca desenfreada pelo lucro, expondo a vida de milhares de pessoas ao contágio do vírus e à humilhação pública. Esse ato patronal mesquinho não se deu por acaso. Ele não é, por assim dizer, um “ponto fora da curva”. Se essa gente teve coragem para fazer o que fez, verdadeiro caso de assédio moral a céu aberto, imaginem o que não acontece no dia a dia, entre as quatro paredes do opressivo ambiente de trabalho. Nesse sentido, é preciso que os órgãos fiscalizadores investiguem a fundo o episódio, os responsáveis sejam exemplarmente punidos e os trabalhadores reparados em sua dignidade brutalmente violada.

Outrossim, convém lembrar que os comerciários são dos mais destacados segmentes da classe trabalhadora local (embora nem sempre as direções sindicais estejam à altura desse potencial, inclusive no caso aqui relatado), tendo protagonizado importantes páginas da história da classe trabalhadora de Campina Grande, a exemplo das greves gerais ocorridas nas últimas décadas no Brasil.

    A cidade do “Maior São João do Mundo”, conhecida por esse e outros superlativos tão ao gosto de suas carcomidas oligarquias, a partir de agora passa a conta com o título nada alvissareiro de capital da infâmia. Esse fato ocorreu justamente na semana em que transcorria a data magna da classe trabalhadora, o internacional 1º de maio. Que esse deplorável acontecimento jamais seja esquecido, até porque ele coincide com o surto de uma pandemia que expôs, definitivamente, as vísceras de um sistema, o capitalismo, que precisa ser, urgentemente, destruído e superado historicamente.

Trabalhadores de todo mundo, uni-vos: hoje e sempre!

(O autor é professor de história da UFCG).

Foto: reprodução – Brasil de Fato

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